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Conselho Regional de Psicologia Santa Catarina - 12ª Região



Entrevista: Despatologização das Travestilidades e Transexualidades


Entrevista: Despatologização das Travestilidades e Transexualidades
2016-10-03

Esse foi o tema do Seminário organizado pelo CRP-12 que lotou o auditório da Fecesc em Florianópolis, no mês de junho. O evento contou com a participação da psicóloga Maria Luiza Rovaris.  Na oportunidade, o CRP-12 entrevistou a palestrante para aprofundar questões sobre o trabalho da Psicologia no processo transexualizador e os principais impasses e desafios dos psicólogos (as) relacionados à temática. Confira! 

 

1.       O que é Despatologização das Travestilidades e Transexualidades?

Maria Luiza: As travestilidades e transexualidades, em uma perspectiva histórica, tornaram-se conceitos operados pela medicina, pelo direito e pelas ciências humanas no sentido de nomear dissidências que transgridem uma das normativas relacionadas a sexo/gênero em nossa sociedade ocidental: a cisgeneridade. Cisgeneridade é uma ideia proposta por ativistas de movimentos sociais de pessoas trans para a designação compulsória que cada pessoa recebe em termos de declaração de sexo/gênero ao nascer. Com isso, cria-se uma série de ideais regulatórios para adequar cada pessoa aos padrões normativos de masculino e feminino.

A partir da década de 1950, o dito "transexualismo" passou a nomear uma perspectiva diagnóstica médica, que o direito, serviço social, psicologia e outros saberes reiteraram, que segue a linha do estabelecimento de um status de "anormalidade" das travestilidades e transexualidades. A essa "anormalidade", que se relaciona com uma suposta incongruência entre "sexo morfológico" e "sexo psicológico", é destinada uma série de princípios médicos de diagnóstico psiquiátrico, tratamento, correção e adequação. É esse status de "anormalidade" seguido de uma nomeação psiquiátrica e as consequentes tentativas de correção que se denomina de patologização. Implica em tornar patológica, no sentido de se afirmar uma categoria de doença, a uma série de experiências que são múltiplas e extremamente singulares.

É importante destacar que o movimento de patologização de orientações sexuais e identidades de gênero não-normativas sempre segue a linha de nomear, sob uma perspectiva patológica, sempre o "outro", quem é definido como "anormal", "estranho", fora das linhas do que as normas, como heterossexualidade compulsória e cisgeneridade, determinam como legítimo. Além disso, o movimento de patologização uniformiza, ou seja, torna homogênea a experiência de pessoas trans, como se seu sofrimento estivesse localizado apenas na questão de sua identidade de gênero. O movimento de pessoas trans que relaciona o ativismo e a produção de conhecimento sobre a cisgeneridade é fundamental para que possamos tornar esse debate mais complexo, afinal, todas e todos constituímos nossas identidades de gênero, não apenas as pessoas trans.

Portanto, a despatologização das travestilidades e transexualidades vem se constituindo como um movimento cujo protagonismo das pessoas trans é de fundamental importância e que teve início em meados dos anos 2000, na América Latina, Europa e EUA. Ativistas, acadêmicas/os, sociedade civil e diversos outros atores sociais se empenharam, sempre com muita resistência contrária inclusive dentro do movimento LGBT, para o combate à criminalização da experiência de pessoas trans. A despatologização significa os ativismos no sentido de afirmar a multiplicidade das possibilidades de experiências relacionadas ao gênero, a problematização das categorias médicas que aprisionam experiências de pessoas trans em termos patológicos e universais, além do questionamento às ciências, dentre elas a psicologia, que historicamente produziram conhecimento e práticas que fortaleciam a dimensão patológica das travestilidades e transexualidades.

 

2.    Como a psicologia vem se posicionando sobre a questão da despatologização das Travestilidades e Transexualidades?

Maria Luiza: É sempre importante marcar que, desde a década de 1950, a partir da atuação de um psicólogo estadunidense chamado John Money e da elaboração de manuais de psicologia e psicologia do desenvolvimento, a psicologia marca uma posição hegemônica mais no sentido de patologizar as travestilidades e transexualidades. É um campo de tensões e controvérsias. No Brasil, uma série de psicólogas/os e o Sistema Conselhos de psicologia, em vinculação com movimentos sociais e discussões críticas, têm participado das campanhas e ações de despatologização, especialmente a partir de 2009. Em 2013, o Conselho Federal de Psicologia lançou a "Nota técnica sobre o processo transexualizador e demais formas de assistência às pessoas trans", que ampara as lógicas de atuação da psicologia brasileira, no sentido da afirmação dos Direitos Humanos e da autoatribuição da identidade de gênero. Portanto, é importante marcar que não há unanimidade em um terreno político tão complexo como a psicologia brasileira, ainda mais em contextos de ações fundamentalistas religiosas que atuam no sentido de excluir esses debates da pauta política e das instituições. Porém, temos uma série de regulamentações que amparam nossa atuação nos sentidos da despatologização.

 

3.       Quais impasses e desafios as/os psicólogas/os tem encontrado relacionada a temática?

Maria Luiza: A meu ver, o principal impasse e desafio vem desde a formação em psicologia no Brasil: o desconhecimento e o distanciamento com a temática e com o papel da psicologia na atuação em serviços, políticas públicas e elaboração de documentos relacionados a problemáticas que envolvem pessoas trans. Há poucos cursos que oferecem disciplinas ou momentos de discussão relacionados a questões de gênero, assim como há pouco envolvimento de profissionais da psicologia no âmbito dos ativismos e produção de conhecimento dos movimentos sociais de pessoas trans. Esse distanciamento é primordial para a manutenção de questões básicas, como o conceito de identidade de gênero e para os desafios relacionados ao paradigma da autoatribuição das identidades.

 

4.       Como você percebe a realidade da população trans no Brasil? E como a psicologia pode contribuir para a transformação desta realidade?

Maria Luiza: O Brasil é o país com o maior número de homicídios de pessoas trans, segundo levantamento realizado pela ONG Transgender Europe. Ainda vivenciamos em nossa realidade uma estrutura de opressão transfóbica, que ao não reconhecer a experiência de pessoas trans, em sua multiplicidade diversidade, como legítima, autoriza uma série de processos de exclusão, estigmatização, criminalização e de violencias. Por mais que, nos últimos anos, algumas pessoas trans tenham conquistado o acesso à educação e ao ensino superior e a lugares no mercado de trabalho formal, muitas questões ainda se fazem presentes e precisam ser combatidas. A psicologia pode contribuir como aliada no combate aos estigmas, mas o fundamental é que se produza análises de implicações de nossas práticas e saberes, que muitas das vezes ainda reiteram concepções, moralidades e perspectivas transfóbicas. É necessário repensarmos a concepção de sujeito em psicologia, a partir da designação compulsória da cisgeneridade, para que efetivamente possamos nos constituir como pessoas e profissionais aliadas/os no processo de despatologização das travestilidades e transexualidades e no combate às violências.

 

5.       Como a psicologia está implicada para o acesso e garantia de direitos para a população Trans?

Maria Luiza: A partir da atuação do Sistema Conselhos nos últimos anos, especialmente com o lançamento da Nota Técnica já mencionada e de campanhas pela despatologização da experiência de pessoas trans, a psicologia brasileira tem se implicado cada vez mais no acesso e garantir de direitos para as pessoas trans. O respeito ao nome social, a produção de possibilidades de acesso a políticas públicas e a garantia da retificação do registro civil de pessoas trans são perspectivas de garantia de direitos primordiais, nas quais temos participação ativa. Precisamos nos atualizar e nos avaliar sempre. Além disso, pensando numa perspectiva de acolhimento e trabalho clínico, temos o dever de complexificar o debate acerca dos dispositivos clínicos e do acompanhamento psicológico de pessoas cuja experiência questiona normativas sociais, como a cisgeneridade, para que possamos efetivamente acolhê-las.

 

6.       Quais as contribuições dos movimentos sociais de pessoas trans e do transfeminismo para a psicologia?

Maria Luiza: As contribuições dos movimentos sociais de pessoas trans e do transfeminismo são primordiais para a transformação da psicologia em uma rede mais transformadora e libertária de produção de conhecimento e de práticas. Desde questionamentos teóricos, como a concepção de sujeito, identidade, gênero e desenvolvimento por parte do transfeminismo até tensionamentos éticos, a partir da crítica à escuta deficitária de muitos profissionais que não acolheram pessoas trans em seus contextos de trabalho, deve servir para que analisemos a psicologia em suas implicações, aplicações e produções teóricas. A psicologia somente será transformadora se conseguir escutar as pessoas trans em suas demandas, críticas e alianças. Temos uma produção intensa em termos de saberes transfeministas, descoloniais, latinos e brasileiros que devemos entrar em contato e dialogar.

 

7.       Diante a atual conjuntura política no Brasil, como você avalia a manutenção dos poucos direitos conquistados até então?

Maria Luiza: Vivemos um momento político muito delicado no Brasil. Temos um longo e complexo debate sobre a efetividade dos direitos em um contexto na qual a exclusão de pessoas LGBT, especialmente pessoas trans, é muito presente. Os direitos conquistados, desde 2004, com o lançamento de políticas públicas voltadas à garantia de direitos da população LGBT e com a realização das conferências nacionais LGBT, por mais que ainda estejam aquém do necessário, estão abalados pelas ameaças à democracia que vivenciamos nesse ano de 2016. Com a extinção de ministérios e secretarias relacionadas à garantia dos Direitos Humanos, torna-se muito difícil estabelecer uma previsão do que está por vir. Isso nos mostra o quanto nosso terreno democrático é frágil e tensionado. O primordial é que continuemos na luta, que continuemos na rua e, especialmente, que continuemos nos articulando nos nossos espaços, fazendo a política acontecer mesmo que nos territórios marginais, entre nós. A produção de espaços seguros e de transformação, mesmo que localizada, é fundamental para a sobrevivência de pessoas cuja vida está ameaçada cotidianamente. Juntas, somos mais fortes.

 

Sobre a entrevistada: Maria Luiza Rovaris Cidade. Possui graduação em Psicologia pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e mestrado em Psicologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), na linha de pesquisa Processos Psicossociais, Históricos e Coletivos. Tem experiência na área da Psicologia, com interesse principalmente nos seguintes temas: história da psicologia, epistemologias feministas, estudos de gênero, processos de criminalização e produção de subjetividades.


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